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ANDRAUS

Um dia São Paulo parou.

O ano era 1972 e eu estava em pé dentro de um ônibus que, inexplicavelmente, parou no meio da Avenida São João. Ainda não era o ponto de parada, nenhum veículo à frente, nenhum semáforo, nenhum pedestre atravessando. Do meu ângulo de visão percebi apenas um fusca azul claro que também parou do lado esquerdo do ônibus. Percebi que na calçada, do lado direito do ônibus, os pedestres também pararam, observando alguma coisa do outro lado da avenida. Imediatamente pensei que todos estivessem assistindo a fuga de algum “trombadinha”. Na época isso ainda chamava a atenção. Desci ali mesmo, pois já estava perto do meu destino.

De uma janela da sobreloja, no canto do prédio comercial envidraçado, saía um jato de fogo ameaçador que mal atingia um metro de comprimento. Dali mesmo assisti a rápida evolução na fase inicial, tendo de recuar até o posto de gasolina um pouco antes de onde eu havia descido.

O incêndio aumentava e me dei conta que onde eu estava “não combinava” com o que eu assistia. Ou ao contrário, combinava muito e perigosamente. Então corri pela rua oblíqua à Avenida São João, cujo ângulo formado era ocupado pelo referido posto. Fui até o final da Praça Júlio Mesquita, próximo à antigamente bela fonte ornamental, assumindo um privilegiado ponto de observação. Lembrei-me que havia marcado encontro com a então namorada, mas, imediatamente, pensei que o conhecimento do fato e a imaginação dela dispensariam minhas justificativas. Resolvido! (Telefone celular só se via nos filmes do 007 usado pelo inigualável Sean Connery com o formato tradicional e disco).

Na Praça Júlio Mesquita lembrei que uma vez por mês meu irmão ia ao Andraus buscar os rendimentos de ações para nossa vizinha viúva sem filhos que diariamente ia nos chamar depois do jantar para assistir TV junto com ela. A gentil e inteligente vizinha, senhora viúva de um voluntário da Revolução Constitucionalista de 1932 como meu pai, apreciava ler, mostrar suas fotos antigas, conversar e tomar seu whisky. Bem, fui para casa conferir onde estavam meus irmãos, preocupado com a possibilidade de um deles ter ido ao Andraus.

No início do percurso, ouvindo o barulho de vidros estourando a quase cem metros, um caco de vidro aquecido, pouco maior do que um grão de feijão, caiu entre minha nuca e a gola da camisa. Um susto que me fez correr alguns metros. Cheguei em casa. E meus irmãos estavam lá, seguros.

Uma água, um xixi, voltei à rua. Na Avenida São João (palco de desfiles, carnaval, manifestações políticas e muito trânsito de veículos) apenas algumas ambulâncias indo ou voltando em alta velocidade. No céu, helicópteros. Então passa um amigo, morador do quarteirão de baixo no edifício do Cinerama, abraçado com a irmã que trabalhava no Andraus. Estava salva. Apenas trocamos olhares e semblantes. Sorriso de alívio. Nunca na vida tivemos um diálogo tão intenso e emocionante sem proferirmos nenhuma palavra. 

Depois me aparece na porta do meu prédio um colega da faculdade de engenharia, presidente do Centro Acadêmico. Eu era o vice. Sugeri que fôssemos até a escadaria do antigo Instituto de Educação Caetano de Campos, na República, de onde assistiríamos o dantesco espetáculo e, depois do incêndio, tomaríamos "um chops" para trocarmos alguns informes.

Sentados na “escada-camarote”, além de chamas e helicópteros que só rodeavam o prédio fatídico, percebemos que havia uma pequena multidão lá em cima. Pior. Não passava um minuto sem que alguém sozinho ou acompanhado saltasse para a morte. A distância não permitia reconhecer ninguém. Felizmente, também não víamos o final da queda de cada pessoa. Durante o “voo” alguns giravam como uma estrela de braços e pernas abertos. Outros movimentavam desesperadamente as pernas como se tentassem desesperadamente subir uma escada invisível de cordas. Um casal “voou” sem soltarem as mãos. Deu um "nó amargo" na garganta. 

Quando resolvemos ir embora, nenhum de nós dois lembrou de "chopes" e conversa planejados. Não combinaria com o que vimos e sentimos. O número dos que saltaram para a morte foi maior do que o número oficial de vítimas divulgado.

Quem não saltou lá de cima foi retirado pelos helicópteros quando estes puderam se aproximar. Soube que alguns pilotos "rebeldes" se anteciparam à autorização, com grande risco pessoal ao cruzar um forte fluxo ascendente de ar aquecido. Estimou-se que a maioria das vítimas foram os que não conseguiram subir, ou retornaram para o interior do prédio diante do bloqueio inicial de acesso ao heliporto. Terminaram calcinados em alguns banheiros, quando os ossos viram cinzas, eventualmente deixando gotinhas metálicas de objetos portados ou de restaurações dentárias.

Os prédios não dispunham de escadas protegidas, à prova de fogo. Acima de dez andares devem ser à prova de fumaça, por pressurização ou por antecâmaras de acesso. O poder público demorou nove anos, além da repetição amplificada da tragédia no Edifício Joelma, para obrigar a inclusão das rotas de fuga protegidas nas edificações. Os legisladores e poderes executivos acatavam o argumento de que a segurança proposta inviabilizaria a construção civil, causando desemprego em massa (...!!!). E quase todo mundo engolia isso.

Após me formar em Engenharia Civil, fiz a Especialização em Segurança do Trabalho. Entre outras atividades da profissão, treinei com a razão e o coração “algumas” Brigadas de Incêndio.

                                                                                                *******

P.S.: Em 1983 tivemos nosso primeiro Regulamento de Segurança Contra Incêndio no Estado de São Paulo. Atualmente estamos no quinto Decreto (atualizações e aperfeiçoamentos) nº 63.911 de dezembro de 2018. Desde o Decreto de 2001, ficam a eles anexos as Instruções Técnicas. Temos atualmente 45 Instruções Técnicas sobre os diversos temas relacionados a incêndio. Um dos mais importantes e extensos é sobre saídas de emergência bem dimensionadas e seguras, atendendo diversos requisitos. SE cumpridas as “I.T.s”, incêndios como Andraus, Joelma, Grande Avenida e outros não ocorrerão e, se ocorrerem (*), teremos ZERO vítimas. Em segurança, "redundância" é palavra bonita. Porque, hein?

As Instruções Técnicas estão disponíveis para qualquer cidadão do planeta Terra no site do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

                                                                                                                                                                                             Antonio Aurélio do Amaral

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